sábado, 25 de fevereiro de 2012

O poeta e a negação do mundo: A impotência do homem perante a Grande Máquina.


Por: Jacqueline Gaudard
 
          






    Não serei poeta de um mundo caduco
   Também não cantarei o mundo futuro  
 Estou preso à vida...
                            (“Mãos dadas”, SM)
        

O mundo é uma lama, mas o poeta através da penetração surda do “reino das palavras” consegue extrair o material necessário para colocar toda a sua indignação perante os acontecimentos que o cercam, pois, agora, ele têm “duas mãos” e o “sentimento do mundo”. É o sujeito abdicado da sua condição de gauche que conduz a poética. Trata-se da plena consciência da sua situação de homem presente no mundo, sobretudo, em face dos problemas de caráter coletivo que o homem atravessa, no momento de conflito do “dever-ser”, atuante em relação as suas perplexidades, misérias, anseios, angústias... Onde tudo é incerto, porém,  funciona como matéria que conduz à nova verdade.
         Os poemas Elegia 1938, Os ombros suportam o mundo e O congresso internacional do medo – ambos pertencentes ao livro Sentimento do mundo (1940) –, caracterizam todo o sentimento negativo do poeta, que vê o homem esmagado pela grande “máquina do mundo” que é o sistema capitalista. Nele observamos o cotidiano retratado de forma violenta, onde as emoções vivenciadas pelo sujeito poético, representam o verdadeiro sentimento de angústia do ser, em se fazer parte desse “mundo caduco” e cheio de contradições. É o eu retorcido  em forma de medo, desencanto, indiferença, certeza, compromisso, solidariedade e esperança que conduz a poética. É o “eu menor que o mundo” que se manifesta contra as atrocidades cometidas pelo homem no período entre guerras. É o eu que desabrocha o sentimento, marcado pela solidão, pela impotência do homem, diante de um mundo frio e mecânico, que o reduz a objeto.
         Em Drummond,  o que vemos é a reflexão poética girando em torno da visão anticapitalista, pois o poeta nega o mundo presente e assume um papel de engajamento das causas políticas ao “lutar com palavras” na difícil tarefa de combater a “Grande Máquina”, mesmo que a luta seja vã. A palavra, agora,  é instrumento de luta na obra, responsável pela grande contradição no seu “dever-ser” de homem, poeta e político:

ELEGIA 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
 
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
 
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
 
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
 
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
 
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
 
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

         
         O tom triste no qual é levado o poema Elegia 1938, é o retrato que caracteriza bem a insatisfação do poeta em relação ao sistema “terrível” da “Grande Máquina”. Sistema esse que aniquila o indivíduo ao nada, que reduz as suas forças de forma impotente como prova do seu poder de destruição. Partindo da idéia de coletividade o poeta proclama: “Trabalhas sem alegria para o mundo caduco/onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.” Portanto, o que observamos é um verdadeiro sentimento de rejeição desse mundo marcado por violentas “ações” que não inspiram nenhum exemplo a humanidade. Entretanto, a cidade está cheia de supostos “heróis” de bronze que insistem em louvar as suas virtudes, seus feitos, sua coragem, de homem combatente e fiel à pátria, pois com sua bravura foram levados pelo sistema à lutarem contra a própria humanidade, destruindo o mundo e a si mesmo. O poeta canta o horror da guerra e manifesta todo o seu sentimento de ironia com relação ao combatente, que depois de lutar por um sistema cruel e, defender os ideais que não representam o bem de todos como forma de contribuição para uma sociedade mais justa, servem como figuras que ilustram, nas praças, o exemplo de homens que não renunciaram e, que deram o seu sangue pela causa:
                    
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas, 
e  preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio a concepção.   
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
        
         A “Grande Máquina” torna-se, definitivamente, a metáfora do mundo moderno e caótico, que leva o indivíduo a alienação e a tendência destruidora de si mesmo, adiando “para outro século a felicidade coletiva”. É ela que dita as regras do viver, do comportamento do homem, das ações, tornando-os semelhantes a ela. Pois é ela que o torna impotente a essa realidade, como ele mesmo diz: “Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.” Além disso, o que podemos depreender desses versos é o caráter emblemático que tornou-se a poesia, pois ela representa o cumprimento de uma profecia, que casualmente remete ao atentado do World Trade Center,  atentado esse que abalou as estruturas do mundo. Pois, o acontecimento faz, agora, parte de um novo ciclo da nossa atual história.
         O poema também nos remete para alteridade, no sentido de transmitir ao outro (diferente) a voz da exclusão, do sujeito desprovido dos direitos em quanto homem atuante nos problemas do mundo onde ele proclama que o sujeito: “Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra/e sabes que dormindo, os problemas te dispensaram de morrer.” É somente através da noite que o sujeito tem o poder de anular e destruir todos os problemas, pois dormindo ele se exime da árdua tarefa de resolve-los durante o dia, que persiste em o aniquilar em quanto ser existente no mundo, pois à noite “os problemas te dispensam de morre”. Porém, “o terrível despertar” lança-os novamente para a dura realidade do dia-a-dia em se viver o mundo, pois só  “prova a existência da Grande Máquina/e te repõe, pequenino em face de indecifráveis palmeiras. ”  Mas tendo o “coração orgulhoso”, ele não se permite em lutar contra essa estrutura econômica e sociopolítica, pois logo anuncia sua impotência diante dela e, confessa ter “pressa de confessar tua derrota”. E prossegue, assim, a praticar “laboriosamente”, os mesmos “gestos universais”, pois “sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.” O poema fala, que esses gestos, são frutos da constante repetição das ações dos homens, que não se cansam de repetir os mesmos erros de outrora. Portanto, o que fica no poema é a idéia de verdadeira dificuldade de se continuar a caminhada perante a esse sistema, que insiste em oprimir o homem com suas ações políticas de visão capitalista. 


OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossege
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
  
         Contudo, a poética drummondiana prossegue com o peso em que o mundo insiste em dar ao homem, pois, agora, somente “os ombros suportam o mundo”. Em verdade, o que vemos é o poeta em sua plena consciência de sujeito presente no mundo, pois diante de tantos problemas “os olhos não choram” mais e, suportam com o coração “seco” a dor da sua existência: “E o coração está seco.” Em “Os ombros suportam o mundo”, percebemos um tom de conformidade perante as coisas, pois “não adianta morrer” para escapar de suas misérias. A “vida” segue em “ordem”, sem nenhuma alteração de sentido das coisas que o cercam, é cíclica. O homem aprende que não adianta mais dizer “meu Deus”: “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus/Tempo de absoluta depuração.” Logo mais adiante, o poeta revela que o sentimento de “amor” tornou-se “inútil” com relação a tantas perplexidades cometidas através dos gestos violentos dos homens, proclamando ser: “Tempo em que não se diz mais: meu amor./Porque o amor resultou inútil.” Porém, as “mãos” continuam a tecer o “rude trabalho” da vida cotidiana.
         Neste poema, entretanto, o poeta ainda mantém a esperança da vida, pois ela “prossegue” como produto da sua condição de se “dever-ser” no mundo. A idéia de ser perdido no mundo não é mais absorvida como antes, no “Soneto da perdida esperança”, de BA, onde anunciava no seu primeiro verso: “Perdi o bonde da esperança.” É os acontecimentos que o faz mudar de posição diante do se pensar o mundo, pois ele não se cala. Mas tenta através de sua poética escandalizar, gritar e agredir esse mundo convencional que sufoca o ser entre o dever-ser e o que é.
         Além disso, a condição de poeta voltado inteiramente para vida ainda é defendida, sobretudo, quando  ele deixar de assumir a sua condição de exilado –  como sentido de fuga do sofrimento do eu abalado pelas coisas – , para se lançar “sozinho” no mundo, na vida:
                        
      Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
     Ficaste sozinho, a luz pagou-se,
     mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
     És todo certeza, já não sabes sofrer.
     E nada esperas de teus amigos.


         Portanto, ele volta-se inteiramente para a realidade da vida, consciente e certo de que “já não sabes sofrer”  perante os fatos do mundo e, que nada poderá esperar do homem. Em seguida, o poeta declara: “Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?/Teus ombros suportam o mundo/ e ele não pesa mais que a mão de uma criança.” A idade avançou e à morte se aproxima, porém, como uma espécie de medo da vida, das condições que ela oferece ao ser já cansado da sua caminhada. Ela representa uma angústia da sua descoberta, pois o mundo “não pesa mais que a mão de uma criança” em pleno começo da vida, sem nenhuma experiência da realidade do mundo que o cerca. O sujeito mesmo com o peso da sua idade suporta o mundo, mas o despertar de uma nova vida representa a angústia de reviver suas misérias e suas contradições: “As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios/provam apenas que a vida prossegue/e nem todos se libertam ainda.” Mesmo que o sujeito prefira à morte, ainda assim, não há a libertação dos seus males, pois o poeta proclama: “Chegou um tempo em que não adianta morrer”. Então a vida segue apenas, “sem mistificação”.

CONGRESSO INTENACIONAL DO MEDO 
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

         

           O medo da vida é o que conduz a poética, pois, agora, o poeta diz: “cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte/depois morreremos de medo”, não é o sentimento da morte que afligi o poeta, nem tão menos o sentimento de morte que o move, e sim, a idéia da vida que continua o seu percurso normal das coisas. Em Congresso internacional do medo, o poeta declara que “provisoriamente não cataremos o amor/que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos”. O amor não faz parte do mundo presente, pois a linguagem que prevalece é a do medo, por isso, percebemos o exílio desse sentimento que existe, mas não se faz presente e, está abaixo do subterrâneo. Logo adiante o poeta continua a declarar:  “Cantaremos o medo, que esteriliza os braços/não cataremos o ódio porque esse não existe”. Até o “ódio” não é suficiente para mover a indignação do sujeito, que vive esmagado pelo sentimento de medo, pois somente o medo tem o poder de paralisar os “braços”, o corpo, a vida. O medo tornou-se “pai” e “companheiro” na árdua tarefa de prosseguir o sentido da existência:


                                       Cantaremos o medo,
                                               .................................
            o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
            o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
            cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
            cantaremos o medo da morte e o medo depois da morte...


         O sujeito é sufocado pelo sentimento de medo, que paralisa os homens, sepulta-os no isolamento, impede a queda das barreiras e mantém o mundo caduco. Portanto, é esse sentimento que provoca a total paralisia do plano social e coletivo, em todos os seus níveis, lugares e grupos. Mesmo depois da morte o medo paralisa, pois “sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.”
       Mais tarde a idéia do medo continuará a perseguir a poética drummondiana, no livro A rosa do povo, de 1945, no poema intitulado O medo, quando o poeta declara: “E fomos educados para o medo/Cheiramos flores de medo/Vestimos panos de medo.” É a temática do medo conduzindo a vida do sujeito no seu sentido de dever-ser no mundo. Pois como declara o critico literário Antônio Cândido na epígrafe do poema: "Porque há para todos nós um problema sério/Este problema é o do medo."
         Para terminar toda a ilustração do sentimento de rejeição perante a esse “mundo caduco” no qual o poeta se propôs a cantar, com toda a magia da palavra e transcendência do ser consciente do seu papel de dever-ser no mundo. O que fica é a percepção de homem combatente e atuante no mundo dividido pelas forças do sistema capitalista, que oprime e fere o homem no sentido mais trágico de sua existência.




Referências Bibliográficas

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ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. 40ª ed. Rio de Janeiro, Record, 1993.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 39ª ed. São Paulo, Cultrix, 1994.
CORREIA, Marlene de Castro. Drummond a magia lúcida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002.
MORAES, Emanuel de. Drummond Rima Itabira Mundo. Rio de Janeiro, José Olympio, 1972.

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