domingo, 2 de junho de 2013

Conto das nove luas

Apenas uma luz

 – Desde quando começaste a gostar de mim?
A cabeça apoiada em seu ombro, Mercedes, lábios entreabertos, sorri curiosa. Na casa imersa em silêncio, Antonio atiçando o fogo, respondeu:
 – Tinha doze anos, quando meus pais, deixando o Rio Grande, viemos para São Paulo. Aqui frequentei o liceu e me formei. Morávamos, então, num bairro tranquilo, de casas acolhedoras e jardins espaçosos. Todas as tardes, ao chegar do colégio, trepava na minha árvore preferida com meus livros de aventuras. Um dia, avistei um caminhão de mudanças estacionando em frente a uma das casas de dois andares, cujo jardim dos fundos limitava com o nosso. Que bom! Ia ter com quem jogar futebol! Os dias passavam e nada. (Nossos vizinhos eram recém-casados.) Me habituei a observá-los podando as roseiras, cuidando da grama, bem cortado e verde. Vez por outra, acenávamos de longe. Naquele ano, passamos os três meses de verão em Santos. Ao voltar, fiquei contente em revê-los, eu na minha árvore, eles em seu belo jardim. Acho que foi em julho: o vento já soprava fresco e por toda a parte um perfume de eucalipto. Estranhei vê-lo sozinho caminhando de um lado para outro a consultar o relógio que amiúde retirava do bolso. Algo o estava preocupando, e a mim também, pois já tinha- lhe amizade. Era quase a hora do crepúsculo (me lembro como fosse hoje), os sinos iam dar as seis, quando ela, aparecendo de repente, cobriu-lhe os olhos com as mãos, surpreendendo-o. Subitamente, tomando-lhe as mãos, colocou-as sobre seu ventre. Entendi, então, entre os beijos e sorrisos te davam as boas-vindas. Sem saber, comecei a te querer bem desde aquele primeiro momento em que eras apenas uma luz nos olhos de teus pais.


NASCIMENTO, Elomar. Conto das nove luas. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, de 1987.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

POESIA: Cora Coralina - Pai e Filho

PAI E FILHO

Não são os filhos que nos devem. São os pais que devem a eles.

Estatuto do passado. Resquício do Pater Familias do Direito Romano - O pai tem todos os direitos e o filhos, todos os deveres. 
Assim era, assim foi. 
Hoje, sem precisar leis, nem decretos, nem códigos, pela força da evolução humana, através de séculos, vencendo resistências, ab-rogando artigos e parágrafos, se fez o inverso.
O pai tem todos os deveres e o filho todos os direitos. 
Princípio de justiça incontestado pelos próprios pais e juízes destes tempos novos.

Nego o amor dos pais do passado, salvante exceções.
O que eles sentiam era o orgulho da posse, o domínio sobre sua descendência.
Tudo, todos, judiciários e adultos. Sua hermenêutica sutil de leis, interpretação, a favor dos adultos.
Os adultos, pai ou mãe, levavam sempre o melhor. Aí estão os inventários antigos. Os velhos autos comprovando interesses mesquinhos, fraudes, despojando filhos menores, indefesos, de bens a eles devidos.
Na casa antiga, castigos corporais e humilhantes, coerção, atitudes impostas, ascendências férrea, obediência cega.
Filhos foram impiedosamente sacrificados e despojados.
E para alguma rebeldia indomável, lá vinha a ameaça terrível, impressionante da maldição mãe, a que poucas resistiam.
Do resto prefiro não esmiuçar.



Cora Coralina, Melhores Poemas, seleção e apresentação Darcy França Denófrio, 3ª ed. rev. e ampliada - São Paulo: Global, 2004.