terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Ferreira Gullar: A Poesia é feita do espanto.




TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

( Ferreira Gullar )


José Ribamar Ferreira nasceu na capital do Maranhão e era um dos onze filhos que teriam seus pais, Newton Ferreira e Alzira Ribeiro Goulart.

Modificou seu nome aos 18 anos, adotando o "Goulart" materno, adaptado a uma grafia portuguesa. Durante a adolescência, descobriu a poesia clássica e em seguida, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, entre outros.

Seu primeiro livro, "Um pouco acima do chão" (1949) acabou excluído de sua bibliografia. Em 1950, com o poema "O galo", ganhou um concurso promovido pelo Jornal de Letras, tendo no júri Manuel Bandeira, Willy Lewin e Odylo Costa Filho.

Ferreira Gullar mudou-se para o Rio de Janeiro em 1951, onde conheceu o crítico de arte Mário Pedrosa e o escritor Oswald de Andrade, e trabalhou como revisor na revista "O Cruzeiro".

Em 1954, publicou "A luta corporal", cujo projeto gráfico chamou a atenção de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Gullar trabalhou na revista "Manchete" e no "Diário Carioca", e depois se engajou no projeto do "Suplemento Dominical" do "Jornal do Brasil".
Gullar participou da I Exposição Nacional de Arte Concreta no MASP, em 1956. No ano seguinte, quando a mostra foi para o Rio de Janeiro, distanciou-se do grupo concretista de São Paulo. Em 1958, lançou o livro "Poemas".

Um ano depois, redigiu o "Manifesto Neoconcreto", publicado no "Suplemento Dominical" e também assinado por Lygia Pape, Franz Waissman, Lygia Clark, Amilcar de Castro e Reynaldo Jardim, entre outros. "O manifesto" abriu o catálogo da I Exposição de Arte Neoconcreta, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Em 1961, Gullar assumiu a direção da Fundação Cultural de Brasília no governo de Jânio Quadros. Na instituição, que dirigiu até outubro de 1961, construiu o Museu de Arte Popular.

A partir de 1962, passou a fazer parte do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes e trabalhou na sucursal carioca de O Estado de S. Paulo. Nesse ano, publicou "João Boa-Morte, cabra marcado para morrer" e "Quem matou Aparecida".

Após ser eleito presidente do CPC, em 1963, filiou-se ao Partido Comunista em abril de 1964, ano em que fundou o grupo Opinião, com Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e outros.

Em 1966, a peça "Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come", escrita em parceria com Oduvaldo Viana Filho, conquistou os prêmios Molière e Saci. No ano seguinte, o grupo Opinião encenou, também no Rio, a peça "A saída? Onde está a saída?", escrita em parceria com Antônio Carlos Fontoura e Armando Costa.

Durante o governo militar, em 13 de dezembro de 1968, Gullar foi preso em companhia de Paulo Francis, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em 1969, ainda lançou o ensaio "Vanguarda e subdesenvolvimento", mas passou a dedicar-se à pintura e, em 1971, pariu para o exílio, morando em Moscou e depois em Santiago, Lima e Buenos Aires.

Durante esse período, colaborou com O Pasquim, sob o pseudônimo de Frederico Marques. Em 1975, publicou "Dentro da noite veloz" e escreveu, em Buenos Aires, o famoso "Poema sujo", que chegou ao Brasil gravado em uma fita, trazida por Vinicius de Moraes e publicado no ano seguinte pela editora Civilização Brasileira. O lançamento do livro no Rio de Janeiro tornou-se um ato pela volta de Gullar, que acabou retornando ao Brasil em 10 de março de 1977.

Nesse ano, lançou "Antologia Poética" e "La Lucha Corporal y Otros Incêndios", publicado em Caracas, Venezuela. No ano seguinte, gravou o disco "Antologia Poética de Ferreira Gullar" e a peça teatral "Um rubi no umbigo" foi encenada.

Seu livro "Na Vertigem do Dia" foi publicado em 1980 e "Toda poesia" marcou seus 50 anos de vida. Lançou ainda o livro "Sobre Arte", uma coletânea de artigos publicados na revista Módulo, entre 1975 e 1980.
Em 1985. Gullar foi premiado com um Molière por sua versão para "Cyrano de Bergerac", de Edmond Rostand. Dois anos depois, lançou o livro de poemas "Barulhos". Em 1989, publicou ensaios sobre cultura brasileira em "Indagações de Hoje". Assumiu a direção do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura em 1992, permanecendo até 1995.

Criticou as vanguardas no livro "Argumentação Contra a Morte da Arte", em 1993, criando polêmica entre artistas plásticos. No ano seguinte, morre sua mulher, Thereza Aragão, produtora e pesquisadora de música popular brasileira, com quem teve três filhos.

Em 1997, lançou "Cidades inventadas" e passou a viver com a poeta Cláudia Ahimsa. "Rabo de Foguete - Os Anos de Exílio" é publicado em 1998. No ano seguinte, lançou "Muitas vozes" e foi agraciado com o Prêmio Jabuti, na categoria poesia. Em 2000, recebeu o Prêmio Multicultural Estadão, de O Estado de São Paulo, pelo conjunto de sua obra.








GALO GALO

O galo
no saguão quieto.

Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.

De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.

Mede os passos. Para.
Inclina a cabeça coroada
dentro de silêncio
- que faço entre coisas?
- de que me defendo?
        
                  Anda

no saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.

Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e o duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura?
Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora?

Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório?

Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva-se o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa.

Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.

Vê-se: o canto é inútil.

O galo permanece – apesar
de todo o seu porte marcial –
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!

Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
                  não seria tão rouco
e sangrento.

                  Grito, fruto obscuro
e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.

 
Em Galo Galo, o poeta indaga sua realidade profunda, tendo a imagem alegórica do "Galo" como forma de exprimir a realidade total de um animal situado no mundo. Ferreira Gular em A luta corporal, obra na qual foi lançado este poema (1954), apresenta uma linguagem lógica e orgânica, ou seja, experiências, tentativas e contradições do poeta, onde as perspectivas da Luta com a própria linguagem, representa o espanto da descoberta da matéria poética.







 
“Eu nunca fiz poesia a partir da poesia. Eu sempre fiz poesia a partir da vida, a partir da experiência. Portanto, quando eu digo “buscar a forma” eu estou dizendo buscar o “modo de expressar” alguma coisa.”

(Ferreira Gullar)




Nenhum comentário:

Postar um comentário