sábado, 5 de maio de 2012

Jorge Amado, "Gabriela, Cravo e Canela" - Segunda Parte: Gabriela com flor.


GABRIELA COM FLOR


     As flores desabrochavam nas praças de Ilhéus, canteiros de rosas, crisântemos, dálias, margaridas, malmequeres. As pétalas das onze-horas abriam-se por entre a relva, pontuais como o relógio da intendência, salpicando de vermelho o verde da grama. Para as bandas do Malhado, em meio ao mato, nos bosques úmidos do Unhão e da Conquista, explodiam fantásticas orquídeas. Mas o perfume a elevar-se na cidade, a dominá-la, não vinha dos jardins, dos bosques, das tratadas flores, das orquídeas selvagens. Chegava dos armazéns de ensacamento, do cais e das casas exportadoras, era o perfume das amêndoas de cacau seco, tão forte que entontecia os forasteiros, tão habitual que ninguém mais o sentia. Espalhando-se sobre a cidade, o rio e o mar.
     Nas roças, os frutos de cacau punham-se de vez, todas as gamas do amarelo na paisagem, um ar doirado. O tempo da colheita aproximava-se, de safra tão grande jamais se tivera notícia.
     Gabriela arrumava enorme tabuleiro de doces. Outro, ainda maior, de acarajés, abarás, bolinhos de bacalhau, frigideiras. O moleque Tuísca, pitando uma ponta de cigarro, esperava a contar-lhe conversas do bar, miúdos acontecimentos, aqueles a afetá-lo mais particularmente: os dez pares de sapatos de Mundinho Falcão, as partidas de futebol na praia, um roubo acontecido em loja de fazendas, o anúncio da próxima chegada do Grande Circo Balcânico, com elefante e girafa, camelo, leões e tigres. Gabriela ria, ouvindo, ficou atenta às notícias do circo:
     - Vem mesmo?
     - Já tem anúncio nos postes.
     - Uma vez teve um circo por lá. Fui com a tia pra ver. Tinha um homem que comia fogo.
     Tuísca fazia projetos: quando o circo chegasse, ele acompanharia o palhaço em seu percurso pela cidade, montado de costas num jumento. Assim acontecia sempre, cada vez que um circo armava seu pavilhão no descampado da banca de peixe. O palhaço a perguntar:
     - Palhaço o que é?
     A meninada a responder:
     - É ladrão de mulher...
     O palhaço marcava-lhe a testa com cal, ele entrava de graça no espetáculo à noite. Quando não ajudava os mata-cachorros na arrumação do picadeiro, fazendo-se indispensável e íntimo. Nessas ocasiões abandonava sua caixa de engraxate.
     - Um circo quis me levar. O diretor me chamou...
     - De mata-cachorro? Tuísca quase se ofendeu:
     - Não. De artista.
     - O que é que tu ia fazer?
     Iluminou-se o rostinho negro:
     - Pra ajudar com os macacos, aparecer com eles. E pra dançar também... Só não fui por causa de mamãe... - a negra Raimunda estava entrevada de reumatismo, incapacitada de exercer sua profissão de lavadeira, os filhos sustentavam a casa: Filó, chofer de marinete, e Tuísca, mestre de várias artes...
     - E tu sabe dançar?
     - Nunca viu? Quer ver?
     Imediatamente pôs-se a dançar, tinha a dança dentro de si, os pés criando passos, o corpo solto, as mãos batendo o ritmo. Gabriela olhava, com ela era igual, não se conteve. Abandonou tabuleiros e panelas, salgados e doces, a mão a suspender a saia. Dançavam agora os dois, o negrinho e a mulata, sob o sol do quintal. Nada mais existia no mundo. Em certo momento Tuísca parou, ficou apenas a bater as mãos sobre um tacho vazio, emborcado. Gabriela volteava, a saia voando, os braços indo e vindo, o corpo a dividir-se e a juntar-se, as ancas a rebolar, a boca a sorrir.
     - Meu Deus, os tabuleiros...
     Arrumaram às pressas, o de doces sobre o dos salgados, tudo na cabeça de Tuísca que saiu assoviando a melodia. Os pés de Gabriela ainda traçaram uns passos, dançar era bom. Um ruído de fervura veio da cozinha, ela precipitou-se.
     Quando sentiu Chico Moleza entrar na casa ao lado já estava pronta, tomou da marmita, enfiou os chinelos, dirigiu-se para a porta. Ia levar a comida de Nacib, ajudar enquanto o empregado não estava. Voltou, porém, colheu uma rosa no canteiro do quintal, enfiou o talo atrás da orelha, sentia as pétalas veludosas a tocar-lhe de leve a face.
     Fora o sapateiro Felipe - boca suja de anarquista a praguejar contra os padres, tão educado quanto um nobre espanhol ao falar com uma dama - quem lhe ensinara aquela moda. A mais formosa das modas, dissera-lhe.
     - Todas as muchachas em Sevilha usam uma flor roja nos cabelos...
     Tantos anos em Ilhéus, batendo sola, e ainda misturava palavras castelhanas ao seu português. Antes aparecia no ar apenas de raro em raro. Trabalhava muito, remendando selas, arreios, fabricando chicotes de montaria, botando sola em sapatos e botas, no tempo livre lia folhetos de capa encarnada, discutia na Papelaria Modelo. Quase só aos domingos vinha ao bar para jogar gamão e dama, adversário temido. Atualmente era todos os dias, antes do almoço, na hora do aperitivo. Quando Gabriela chegava, o espanhol suspendia a cabeça de rebeldes cabelos brancos, ria com os dentes perfeitos, de jovem:
     - Salve la gracia, olé.
     E fazia com os dedos um ruído de castanholas.
     Outros também, fregueses anteriormente acidentais, haviam-se tornado quotidianos, o Vesúvio conhecia uma singular prosperidade. A fama dos salgados e doces de Gabriela circulara, desde os primeiros dias, entre os viciados do aperitivo, trazendo gente dos bares do porto, alarmando Plínio Araçá, o dono do Pinga de Ouro. Nho-Galo, Tonico Bastos, o Capitão, cada um por sua vez, haviam partilhado o almoço de Nacib, saíram dizendo maravilhas da comida. Seus acarajés, as fritadas envoltas em folhas de bananeira, os bolinhos de carne, picantes, eram cantados em prosa e verso - em verso por que o professor Josué a eles dedicara uma quadra, onde rimava frigideira com abrideira, cozinheira com faceira. Mundinho Falcão já a solicitara por empréstimo, um dia, quando ofereceu um jantar em sua residência, por ocasião da acidental passagem por Ilhéus, num Ita, de um amigo seu, senador por Alagoas.
     Vinham para o aperitivo, o pôquer de dados, os acarajés apimentados, os bolinhos salgados de bacalhau a abrir o apetite. O número crescendo, uns trazendo outros, devido às notícias sobre a alta qualidade do tempero de Gabriela. Mas muitos deles demoravam-se agora um pouco mais além da hora habitual, atrasando o almoço. Desde que Gabriela passara a vir ao bar com a marmita de Nacib.
     Exclamações ressoavam à sua entrada: aquele passo de dança, os olhos baixos, o sorriso espalhando-se dos seus lábios para todas as bocas. Entrava, dizendo bom dia, por entre as mesas, ia direta para o balcão, depositava a marmita. Habitualmente, àquela hora o movimento era mínimo, um ou outro retardatário a apressar-se para casa. Mas, pouco a pouco, os fregueses foram prolongando a hora do aperitivo, medindo o tempo pela chegada de Gabriela, bebendo um último trago após sua aparição no bar.
     - Desce um rabo-de-galo, Bico-Fino.
     - Dois vermutes aqui...
     - Saímos para outra? - os dados ressoavam no copo de couro, rolavam sobre a mesa. - Trinca de reis em uma...
     Ela ajudava a servir, para mais depressa o movimento acabar, senão a comida esfriaria na marmita, perderia o gosto. Os chinelos arrastando-se no cimento, os cabelos amarrados com uma fita, o rosto sem pintura, as ancas dança. Ia por entre as mesas, um lhe dizia galanteios, outro a fitava com olhos súplices, o Doutor batia-lhe palmadinhas na mão, chamava-a minha menina. Ela sorria para uns e outros, pareceria uma criança não fossem as ancas soltas. Uma súbita animação percorria o bar, como se a presença de Gabriela o tornasse mais acolhedor e íntimo.
     Do balcão, Nacib a via aparecer na praça, a rosa na orelha, presa nos cabelos. Semicerravam-se os olhos do árabe - a marmita cheia de comida gostosa, àquela hora sentia-se esfomeado, contendo-se para não devorar os pastéis e empadas de camarão, os bolinhos dos tabuleiros. E a entrada de Gabriela significaria mais uma rodada de bebida em quase todas as mesas, aumento de lucro. Ao demais, era um prazer para os olhos vê-la ao meio do dia, rememorar a noite passada, imaginar a próxima.
     Por baixo do balcão a beliscava, passava-lhe a mão sob as saias, tocava-lhe os peitos. Gabriela ria então em surdina, era gostoso.
     O Capitão a reclamava:
     - Venha ver essa jogada, minha aluna...
     De aluna a tratava, um falso ar paterno, desde um dia quando tentara, no bar quase vazio, ensinar-lhe os mistérios do gamão. Ela rira sacudindo a cabeça, além do jogo de burro não conseguia aprender nenhum outro. Mas ele, nas conclusões das partidas prolongadas em jogadas lentas para a ver chegar, reclamava sua presença nos lances decisivos:
     - Venha aqui me dar sorte...
     Por vezes a sorte era para Nhô-Galo, para o sapateiro Felipe ou para o Doutor:
     - Obrigado, minha menina, Deus lhe faça ainda mais bela - o Doutor batia-lhe levemente na mão.
     - Mais bela? Impossível! - protestava o Capitão, abandonando o ar paternal.  
     Nhô-Galo não dizia nada, apenas a olhava. O sapateiro Felipe elogiava-lhe a rosa na orelha:
     - Ah! mis vinte años...
     Reclamava de Josué, por que não fazia ele um soneto para aquela flor, aquela orelha, aqueles olhos verdes? Josué respondendo que um soneto era pouco, faria uma ode, uma balada.     
     Sobressaltavam-se quando o relógio soava as doze e meia, iam ªsaindo, deixando gordas gorjetas que Bico-Fino recolhia com as unhas sujas e ávidas. Iam empurrados pelo relógio, como obrigados, a contragosto. O bar esvaziava-se, Nacib sentava-se a comer. Ela o servia, rodando em torno da mesa, abrindo a garrafa de cerveja, enchendo-lhe o copo. O rosto moreno resplandecia, quando ele, farto, entre dois arrotos - é bom para a saúde, explicava -, elogiava os pratos. Recolhia as marmitas, Chico Moleza aparecia de volta, era a vez de Bico-Fino ir almoçar. Gabriela armava a espreguiçadeira num terreno ao lado do bar, plantado de árvores, dando para a praça. Dizia até logo, seu Nacib, voltava para casa. O árabe acendia o charuto de São Félix, tomava dos jornais da Bahia, atrasados de uma semana, ficava a espiá-la desaparecer na curva da igreja, seu andar de dança, seus quadris marinheiros. Já não levava a flor na orelha, metida nos cabelos. Ele a encontrava na espreguiçadeira, teria caído por acaso, ao curvar-se a moça, ou a retirara ela da orelha e a deixara ali de propósito? Rosa rubra com cheiro de cravo, perfume de Gabriela.


Jorge Amado, Gabriela, cravo e canela, Segunda Parte: Gabriela com flor - ed. 79ª - Rio de Janeiro, Record -1998.)


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