quarta-feira, 2 de maio de 2012

Crônica - Só a terra não basta











A feira era grande, mas a freguesia pequena. Os produtores chegavam de madrugadinha, fazendo o mínimo barulho que permitiam seus veículos. 


O José vinha na sua moto velha, abarrotada de pés de alface, almeirão, couve... Maldizia a hora em que resolveu plantar couve. Era tanta que ficou conhecido, o que é natural, como Zé das Couve. Valtercides chegou mais cedo hoje, o carro, 1967, atulhado de batatas-doces, mandioca, inhame. Seu Jair aparece com uma dúzia de galinhas pendurada no guidão da bicicleta. O feijão viaja de carroça e o café no lombo do burro. 



Um movimento louco. Além dos camponeses chegam os produtores da cidade: salgados, bolos, brinquedos de pau... 



O caminhão do Seu Antônio está atrasado, se atrasa sempre. Precisa percorrer as estradas que nem existem mais, ou que nunca existiram, para recolher os produtos de dez camponeses. Nunca se sabe quando vai chegar. 



Tudo ali é produzido nos arredores da cidade. Não era assim quando só haviam a cerca, o capim, o nelore. O Coronel Jarbas nem pisava na rua, chegava direto de Araçatuba e se mandava duas horas depois. 



O Coronel não viria mais; há dois anos não vinha. Nas terras que ele reclamava para si, agora vivem duas centenas de famílias que enfrentaram noites em claro na defesa do acampamento contra os jagunços e a polícia, sempre rondando, provocando. 


II
O acampamento durou pouco, só o tempo da comissão encarregada do corte da terra entregar os lotes demarcados. Uma semana de trabalho duro, fazendo picada na mata e na braquiária, mas quanta alegria de ver chegar aquele dia. Era coisa nova, que ninguém tinha visto; enquanto muitos ficam na estrada a vida toda, aqui estavam na frente. 


Parece que o sol adivinhou e iluminou a assembléia de maneira especial. Em meio a músicas, vivas, risadas, lágrimas de alegria, as crianças sortearam os lotes. 



Todos se puseram a arranjar as mudanças, satisfeitos — uns mais, outros menos — ninguém duvidava da honestidade do sorteio nem subestimava a grandeza do passo que acabavam de dar com as próprias pernas. 



Dois anos se passaram e estavam lá, produzindo naquela terra expropriada do latifúndio expropriador. As mãos grossas dos calos denunciavam que não houve moleza, não. O pasto fora arrancado na mão, com a família toda ajudando. Quantas vezes o Antonino não mirou o alto da encosta, o suor queimando os olhos, e pensou em desistir? Alguns desistiram. A terra agora era sua, está certo; havia produção, está certo, mas como ele ia tirar dali a colheita? 



Todos tinham mais ou menos os mesmos problemas para resolver. Faltava a estrada, a escola, o transporte... 



Se a produção do segundo ano foi ainda maior que a do primeiro, a quem vender senão ao Juliano da Grão de Ouro, aquele mesmo que morria de fome nos tempos do Coronel Jarbas porque não tinha nada que comprar. Pois é, agora ele chega, diz o preço que quer pagar e todos tem que vender, senão estraga tudo na roça. Assim Juliano fez seu pé de meia. Às custas dos camponeses. 



Mas, aos poucos alguns deles vão percebendo que sozinhos não irão longe. Um passo acima dos que ainda lutam heroicamente pela terra, e dois adiante dos que se deixam arrastar pelo oportunistas, se juntaram para uma experiência também nova. O grupo de ajuda mútua ainda é pequeno, mas começa a empolgar; todos os antigos desconfiados querem saber a quantas anda o trabalho, se alguém faz corpo mole, se tem alguém que se escora nos companheiros. O fato é que o milho está bonito que só vendo. Ano que vem serão, pelo menos, mais dois grupos como este. 



Uma escola bem que ia ajudar. Mas, que escola? Alguns que nem sabem ler já têm consciência que uma escola que sirva aos camponeses tem que ser feita por eles, dirigida por eles e que os ensine a dirigir. Governar é a palavra certa, porque para o mundo que eles libertam do latifúndio é necessário trabalhadores cultos. 


III
A feira agora está se enchendo de rostos conhecidos. Conhecidos da feira? Não. As mesmas pessoas que ajudaram ao acampamento com alimentos, roupas e até dinheiro dois anos atrás. Não era esmola, nem a caridade cristã, era respeito, pela coragem e destemor dos trabalhadores da terra. Também queriam que a cidade voltasse a viver. Durante muitos anos o coronel não comprou nem o sal para o gado na cidade. Agora, não, os camponeses que não precisavam mais de doações vêm expor os melhores frutos de seu trabalho na cidade e fazem, por sua vez, doações aos que se encontram cortando suas terras e expropriando mais um coronel. Até os que achavam que a gente era vagabundo vêm, olha só! No meio de abelhas persistentes, Jorge se aproveita do calor e tira até a última gota de caldo da cana, que trouxe na charrete. O Gumercindo já vendeu todo seu feijão e, com o dinheiro vai comprar algumas coisas para casa. Colheu no começo da semana e carregou, nas próprias costas, até em casa, porque ainda não tem tulha. Talvez ajude a construir aquela grande que o grupo do milho vai fazer. A essa hora alguma panela de pressão aqui da cidade deve estar apitando. 


A farinha de mandioca da Dona Zulmira não precisa de propaganda. É conhecida como a melhor da região e com sua venda faz todo o sortimento da casa, até de ferramentas para a roça. 



O terreno em que hoje fica a feira é da prefeitura e por várias vezes os políticos da cidade tentaram construir ali um edifício, imponente como só eles sabem fazer, e inútil também. Com muito custo, os feirantes se uniram, foram à prefeitura, protestaram, não arredaram pé, e mantiveram a feira ali. Tem até arrecadação; são R$ 4,00 e muitos não pagam; dá só para fazer a limpeza do local. Mas o perigo de despejo retorna a cada ano, e piora depois de cada eleição. 



A construção de um galpão que abrigue a feira será obra dos próprios feirantes, que são também camponeses, porque sabem que Estado não o fará. Até hoje não reconheceu a posse da terra, acha que a feira não existe. E daí? Ninguém precisou do Estado para conquistar a terra, que foi cortada apesar dele, e a feira acontece movida por essa mesma força. 



No meio da gritaria dos pregões, a voz de Seu Nestor se destaca: 


— Olha a laranja! Olha a laranja!
— É doce, seu Nestor?
— Não. Se fosse doce eu gritaria: Olha o doce! Olha o doce! A laranja é doce, sim, patrão. Vai levar quantas dúzia? 


Ainda falta muita coisa, e os companheiros sabem disso. Existem os tratores, que todos já viram, mas ninguém possuiu, colheitadeiras, então. As estradas em alguns lugares são boas também. E os armazéns; cada silo maior que o outro. Estão longe daqui, não é? O maior é o do Juliano, que não é tão grande assim. Mas, o importante é que todos sentem que é importante ter essas coisas, os meios de produção: de armazenagem, de transporte. Não individualmente, mas juntos, da mesma forma que conquistaram a terra e igual o grupo de ajuda mútua que está dando certo. 


Todos sabem que é difícil. Tem o caso do Moacir, que não quer fazer nada junto com ninguém, mas, aos poucos convenceremos também a ele de que a produção coletiva é a melhor.

Olha só aquele garoto com o pai, comendo o pastel que Dona Cida fez na madrugada para trazer quentinho para a feira. Impossível não nos transportarmos para o futuro, aquele mesmo que a gente projeta desde que é garoto até morrer. O futuro que a maioria dessas pessoas quer, agora, não é mais o sonho de terra, casa, carro, mas o porvir de uma sociedade que produzirá um só tipo de homens: os livres da exploração.



José Ricardo Prieto é Professor de História da rede pública de ensino e, diretor do jornal "A Nova Democracia". 



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