domingo, 20 de maio de 2012

Charles Baudelaire par Saez

   

MULHERES MALDITAS - DELFINA E HIPÓLITA

CHARLES BAUDELAIRE

À tíbia das lamparinas voluptuosas,
Sobre sensuais coxins impregnados de essência,
Sonhava Hipólita as carícias poderosas
Que lhe erguiam o véu da púbere inocência.

Ela buscava, o olhar na tempestade posto,
De sua ingenuidade o céu distante agora,
Como um viajante para trás volve o seu rosto
Em busca da manhã que já se foi embora.

Os olhos já sem viço, o preguiçoso pranto,
O ar exausto, o estupor, lúbrica moleza.
Os barcos sem ação, como armas vãs a um canto,
Tudo afinal lhe ungia a tímida beleza.

Posta a seus pés, serena e cheia de alegria,
Delfina lhe lançava à carne olhos ardentes,
Como o animal feroz que a vítima vigia,
Após havê-la antes marcado com seus dentes.

Bela e viril de joelhos ante a frágil bela,
Soberba, ela sorvia com volúpia intensa
O vinho da vitória e, acercando-se dela,
Punha-se à espera de uma doce recompensa.

No pasmo olhar da presa ela buscava aflita
Ouvir o canto que o prazer sem voz entoa,
E essa sublime gratidão que arde infinita
E, qual suspiro, sob as pálpebras escoa.

- "Hipólita, amor meu, que me dizes então?
Compreendes quão pueril é oferecer agora
Em holocausto as tuas rosas em botão
A um sopro que as pudesse espedaçar lá fora?

Meus beijos são sutis como asas erradias
Que afagam pela tarde os lagos transparentes,
Mas os de teu amante hão de escavar estrias
Como as carroças e os arados inclemente;

Sobre ti passarão qual sobre alguém pisasse
Uma junta de bois os cascos sem piedade...
Hipólita, meu bem! Volve pois tua face,
Tu, coração, que és o meu todo e és a metade,

Volve teus olhos cheios de astros como os céus!
Dá-me esse olhar que é como um bálsamo bem-vindo;
Do prazer mais sombrio eu erguerei os véus
E hei de fazer-te adormecer num sonho infindo!"

Mas Hipólita então a fronte levantando:
- "Não sou ingrata e do que fiz não me arrependo,
Minha Delfina, eu sofro e à dor vou definhando,
Como após um festim crepuscular e horrendo.

Sinto pesarem em mim graves terrores
E negros batalhões de fantasmas dispersos,
Que querem conduzir-me a fluidos corredores
Num sangüíneo horizonte em toda parte imersos.

Teremos cometido algum pecado extremo?
Explica, se é capaz, o medo que me acua:
Se me dizes: Meu anjo! Eu de alto a baixo tremo
E sinto minha boca ir em busca da tua.

Não me olhes mais assim, ó tu, meu pensamento!
Tu que eu adoro e que és enfim minha eleição,
Mesmo que fosses um fantoche fraudulento
E a própria origem dessa estranha perdição!"

Delfina, a sacudir nervosa a crina ondeante,
E como a tripudiar sobre um tripé supremo,
O olhar fatal, gritou, despótica e arrogante:
- "E quem diante do amor ousa falar do inferno?

Maldito para sempre o sonhador inútil
Que por primeiro quis, em sua insanidade,
Enfrentando um problema insolúvel e fútil,
Às delicias do amor juntar a honestidade!

O que deseja unir, em místico projeto,
O dia com a noite, o frio com a flama,
Jamais aquecerá seu trôpego esqueleto
Àquele rubro sol que amor também se chama!

Vai, se queres, de um noivo estúpido à procura;
Abre teu peito em flor a seus beijos em fúria;
E como quem o horror ao remorso mistura,
No seio hás de exibir-me o estigma da luxúria...

Aqui somente a um mestre é licito servir-se!"
Mas Hipólita, em meio a uma enorme aflição,
De súbito gritou: - "Sinto em meu ser abrir-se
Um abismo, e este abismo é enfim meu coração!

Ardente qual vulcão, mais fundo que a tormenta,
Nada este monstro aplacará dentro de mim
E nunca há de saciar Eumênide sedenta
Que o queimará, archote em punho, até o fim.

Que os véus de nossa alcova ocultem-nos do mundo,
E que o cansaço dê repouso a tais agruras!
Quero extinguir-me no teu vórtice profundo
E no teu seio achar a paz das sepulturas!"

- Descei, descei, ó tristes vítimas sublimes,
Descei por onde o fogo arde em clarões eternos!
Mergulhai neste abismo em que todos os crimes,
Tangidos por um vento oriundo dos infernos,

Fervilham de mistura aos ásperos trovões.
Sombras dementes, ide ao fim de vosso vício;
Não poderei o ódio expulsar dos corações,
E é do prazer que há de surgir vosso suplício.

Jamais um raio há de clarear vossas cavernas;
Pelas fendas da pedra os miasmas delirantes
Infiltram-se a brilhar, assim como lanternas,
E os corpos vos penetram de odores nauseantes.

O acre prazer que vos alegra a erma existência
A sede vos aumenta e a vossa pela engelha;
E ao vento furibundo da concupiscência
Vossa carne se esgarça qual bandeira velha.

Longe dos vivos, erradias, condenadas,
Correi rumo ao deserto e ali uivai a sós;
Cumpri vosso destino, almas desordenadas,
E fugi o infinito que trazei em vós!




Nenhum comentário:

Postar um comentário