Não sei se isso 
É a minha loucura
Ou um jeito meu de não enlouquecer:
O fato é que escrevo
Cada palavra
Como de gota em gota
Fosse lágrima
Que me desocupa a alma!
(Maria Bessa)
 
É a minha loucura
Ou um jeito meu de não enlouquecer:
O fato é que escrevo
Cada palavra
Como de gota em gota
Fosse lágrima
Que me desocupa a alma!
(Maria Bessa)
O nordeste na primeira metade do século XX
Por Claudio Rodrigues especial para a biblioo
A década de 1930 é conhecida nos espaços
 literários como o momento do romance regional, especificamente o 
romance ambientado no sertão nordestino. Após as reivindicações dos 
modernistas de 22, e de ser instaurada uma literatura com uma linguagem 
mais abrasileirada, é no romance de 30 que o país passa a ser retratado 
com mais realismo. Os problemas sociais, o flagelo da seca, os mandos e 
desmandos de uma terra de leis inexistentes são temas que orientam 
escritores como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e
 Jorge Amado (no Nordeste) e Érico Veríssimo (no Sul). Embora o sertão, 
as matas e o litoral do nordeste tenham sido já retratados antes dessa 
época (O sertanejo, de José de Alencar; Os sertões, de Euclides da Cunha, O Cabeleira, de Franklin Távora; A Bagaceira,
 de José Américo de Souza) é com o regionalismo de 30 que a literatura 
começa a refletir o país de modo mais crítico e polêmico.
Os romances tinham em comum, além da crítica de forte apelo social, a linguagem limpa de ornamentos, destituída de metáforas, seca como o problema que ela encerrava. Mas essa nova linguagem, nascida de um despojamento, enche os olhos dos leitores brasileiros, ávidos por conhecer o Brasil desconhecido porque esquecido. Graciliano foi mestre no uso dessa linguagem, mas também o foram Rachel de Queiroz (O Quinze) e José Lins do Rego (Fogo Morto). Passada essa década de “redescoberta do país esquecido”, surgiram outros escritores cuja linguagem foi reinaugurada, como Clarice Lispector e Guimarães Rosa. E o nordeste deixou de ser o centro da literatura. Estávamos cansados de ver a miséria retratada na ficção. Queríamos respirar outros ares. Novos escritores nordestinos não despontaram. O eixo de ficção sul-sudeste se intensificou. Veio a fase do conto, houve uma certa estagnação da literatura na década de oitenta.
O nordeste dos anos 2000: dá para falar em regionalismo?
Mas eis que o final do século XX 
novamente viu surgir vozes nordestinas, apresentando uma ambiência 
totalmente diferente da geração de 30, em projetos igualmente distintos 
entre si. Não sei se coloco esses novos escritores dentro do bojo da 
geração 2000 (muitos escrevem desde a década de 90, embora tenham sido 
reconhecidos apenas a partir dos 00), mas o fato é que uma nova 
configuração de ficção sobre o nordeste é clara.
Para citar apenas dois representantes 
dessa nova geração, indico Marcelino Freire, contista pernambucano e 
agitador cultural em São Paulo, cuja ficção é quase minimalista, uma 
linguagem oralizada, performatizada e de personagens mergulhados numa 
crueza (Rasif: mar que arrebenta, 2008, é um exemplo), e o romancista premiado Ronaldo Brito (do romance Galileia,
 que venceu alguns prêmios importantes no país recentemente). Ao 
contrário do nordeste mítico, primitivo, seco e da política do 
manda-quem-pode-obedece-quem-tem-juízo, a temática agora parece 
voltar-se mais para as ações humanas individuais, embora não se deixe de
 apresentar a paisagem. São as questões internas que conduzem os enredos
 e orientam a trama hibridizada. O personagem segue discorrendo sobre 
sua existência num mundo cruel, quase sem intermediação de narrador. O 
personagem livre das descrições psicológicas se diz, se mostra e se 
impõe.
Uma escrita de peso em O último circo
Nessa resenha, gostaria
 de apresentar uma escritora nova, recém-publicada pela Editora 
Multifoco (Rio de Janeiro), que pode muito bem ser uma representante 
dessa nova ficção nordestina. Não que o tema regionalismo tenha 
despontado de novo. Não é isso. São escritores de uma região escrevendo 
sobre o humano, sobre a profundidade do humano, sem limites de 
fronteiras, ainda que o ambiente seja o sertão ou a faixa litorânea. A 
escritora paraibana Maria Bessa, em seu romance O último circo,
 apresenta uma visão muito particular de uma família “tipicamente 
nordestina”, como a sinopse indica. Mas esse típico está longe de ser 
uma caricatura de personagens-tipos. A nordestinice está latente nos 
modos, na linguagem. E só. De modo que essa família pode estar em 
qualquer parte do país.
Em pouco mais de 250 páginas, o romance 
vai alinhavando pequenas histórias, a modo de uma colcha de retalhos. 
Pelos olhos do personagem-narrador, o adolescente Euves (com “u” mesmo) 
vemos a trajetória de uma família relativamente abastada, na cidade de 
Mataraca (litoral paraibano), até o seu declínio, por volta dos anos 50.
 A família de Euves (seu pai também é Euves com “u”, erro do tabelião) 
descende dos abastados proprietários de engenhos de açúcar, mas o que 
importa saber no romance é menos o relato de sua decadência e mais os 
muitos casos narrados com doses de bom humor, numa linguagem apurada e 
lírica, bem construída, repleta de cacoetes e de recursos regionalistas 
que dão ao texto mais força de expressão. Esqueci de mencionar que o 
cachorro da família se chama Antonio Silvino e adora peidar. E o que 
isso tem a ver com a trama? E o que o Euves filho e o Euves pai têm em 
comum, além do lapso do registro do nome? E onde entra na história (ou 
histórias) o circo, com seu universo mágico? Será uma metáfora? Seria a 
família o próprio ambiente circense, em que cada personagem cumpre muito
 bem seu papel de fazer rir?
“Francamente, papai nunca foi uma pessoa
 totalmente engajada com o mundo real, e mamãe sabia disso. E, de acordo
 com o calendário lunar, isso se agravava de tempos em tempos. Sabe, 
Menino, seu pai é como um aparelho fora da tomada, totalmente desligado.
 Mamãe disse, vivia dizendo…” Logo no início, percebe-se a importância 
desse pai na vida do adolescente. Os títulos dos capítulos já indicam 
que o romance é quase que uma rapsódia, costura de contos sobre a 
família. Vejamos alguns: “Quem foi que disse que Deus não dorme?”; “Vovô
 foi alvejado na moleira por uma cigarra mijona”; “Uma descendência de 
dom Fruela: papai tinha sangue real”; “cogumelos de inverno ou orelha de
 pau”; “um debutante, um veterano, um bêbado: uma história sexual”. Quem
 não sente vontade de mergulhar na leitura vendo esses títulos tão 
inspirados?
A advertência ao leitor iniciante de 
Maria Bessa é: “não se preocupe com o enredo, com começos, meios e 
fins”. Finalmentes é o que não há nessa narrativa. O que conta são os 
contos (causos, rapsódias), a linguagem, os capítulos quase soltos, que 
bem poderiam ser contos isolados, a polifonia dos personagens variados e
 engraçadíssimos, que fazem de Maria Bessa uma promessa que já é 
presente. Ela só precisa ser lida, vista, divulgada.
Por fim, é importante dizer que a 
Editora Multifoco, situada no Rio de Janeiro, vem se destacando no 
mercado editorial por dar chance para autores desconhecidos. Não estou 
me referindo àquelas editoras de fachada que cobram do autor pela 
edição/impressão. A multifoco se responsabiliza por tudo, desde que os 
editores vejam no texto qualidades. Depois da publicação, a própria 
editora se encarrega de vender a obra (www.editoramultifoco.com.br) sem prejuízo para o autor.
E para não dizer que o título é 
metáfora, deixo o leitor com um trecho do último capítulo: “Naquele dia,
 chovia muito em Mataraca. Para falar com franqueza, chovia demais. As 
águas chegaram a invadir as ruas, cobrindo o meio-fio. E o céu, Deus do 
céu, o céu não estava azul. Mas havia o circo. E a cidade tornava-se 
grande porque receberia um circo; para ser franco, tornava-se imensa, 
porque cabia um circo. Um circo inteiro dentro dela”. 
O último circo é uma leitura 
que dá a dimensão de imensidade a um pequeno lugarejo, a uma pequena 
família, num tempo tão pequeno, na vastidão da memória da autora.
Autor: Maria Bessa
Editora Multifoco, 2011
Gênero: Romance
Páginas: 276
Preço: R$ 50.00
Cláudio
 Rodrigues é doutor em Ciência da Literatura (UFRJ, mestre em Literatura
 Brasileira (UFF), professor de português e literatura em EJA e autor de
 livros infantojuvenis.
 Fonte:http://biblioo.com.br/a-nova-ficcao-sobre-os-nordestes-assim-mesmo-no-plural/

 
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