domingo, 25 de março de 2012

Conto: O CURIOSO CASO DO JACU



Por Maria Bessa 

“Se a palavra existe para não ser falada, então para que é que ela nasce, mamãe? – Foi essa incrível e intrigante indagação que Clarinha fizera a sua mãe, Celi, no dia em que ela mesma sofreu do pai, Agenor, uns catiripapos. Clarinha estava furiosa! Furiosa mesmo! Com “F” maiúsculo!
 Então aconteceu assim, bem no meio da sala de visitas e tudo! Vamos deixar que a própria Clarinha fale, a própria vitima, justiça seja feita:
Aconteceu assim: a menina Clara, ou seja, eu própria! nem acabara de chegar direito da escola, ainda adentrava pelas dependências da casa paterna, enfunando-me afoita feito um relâmpago por entre os corredores compridos que davam para o meu refúgio predileto, adivinha o quê? O meu quarto, é claro! (depois, é claro, da casa da minha amiga do peito, Bezinha). Eu queria livrar-me depressa da sainha engraçadinha de pregas azuis e bainha acima dos joelhos; e da blusa de poliéster branco-garça tinindo de encardida. Um sorriso colegial estampado no rosto, entoando uma modinha na boca! “laralaralara!...”
Foi assim que acabei de chegar da aula de Literatura (amooooo literatura! Adooooro minha ‘fessora de literatura!) Então eu chegara toda arejada em sorrisos, com uma anônima e desentoada e ridícula cançãozinha na boca, e uma escarcela, também azul, debaixo do braço... (ei, psiu! Aposto que você aí, nem sabe o que significa escarcela! Acertei? É claro que acertei! Tudo bem! Vamos lá! Escarcela é um termo bastante obsoleto, adoro os termos obsoletos, cheirando a bolor; desenterrar defuntos é comigo mesmo! Acho que vou estudar fóssil!... etcétera, etcétera! Mas você também pode consultar um dicionário, e olhe, é bom que seja um dicionário também obsoleto, nem pense em abrir o Aurélio! Nem mesmo o Antonio Hoausss se deu ao trabalho de metê-lo entre seus milhões e tantos verbetes... No fim das contas para resumir a história e lhe poupar da amolação de escarafunchar dicionário que ninguém merece, vamos combinar! eu digo que escarcela é um sinônimo para o que hoje em dia chamamos de pasta ou mochila, tudo bem, quebrei seu galho! vamos adiante).
Então eu peguei o livro que estava fora da escarcela, tão azul quanto a minha saia, preso entre meu braço e meu corpo, mais precisamente sob meu sovaco ainda sem pelos nem cabelos (repare, eu poderia muito bem dizer entre as minhas axilas ainda sem pelos nem cabelos... Axila é sonoramente mais bonito, é certo, mas como eu disse antes adoro termos em desuso! Diz mamãe, enojada, que isso é coisa de aborrescente, o fato é que eu detesto ser unânime! a-d-o-r-o-ser-do-contra! Unanimidade é coisa de cérebro desprovido de inteligência, mamãezinha!) Então voltando ao assunto do livro que estava fora da escarcela bem azulzinha como é o nosso céu, eternamente fixado na nossa Bandeira, o danado se foi escorregando como que deliberadamente do meu sovaco para o móvel da sala, caindo bem no centro mesmo da mesinha de centro, bem aos olhos do meu pai. Pra quê! Menina, isso deu o maior quiprocó! (kkkk! Hoje decidi intoxicar todo mundo de palavras raras... raras e esdrúxulas... Esdrúxula? essa é mesmo de matar! Isso é a minha cara, Mamãe que o diga! Bezinha, minha amiga do peito, que o diga! Mamãe vive dizendo que Bezinha não é catarro, mas adora andar no meu peito!)
 Acontece que o danado do livro deu de cair numa posição que aos olhos de papai pareceu indecente.    
         Tudo começou assim, por causa de um nada, um simples nadinha... Acho melhor começar do começo. As coisas importantes são começadas assim, do Principio como na Bíblia. Só mais um adendo à guisa de explicação: Se eu fosse dar um titulo a essa história eu gostaria que ela se chamasse, “A problemática do cu”, simplesmente isso, sem nada de lições de moral, Deus me livre! Epimítio à parte. Faça-me o favor!
Agora começando do começo. Nada de entremeios! Nada de parênteses! Parênteses só servem para emperrar o bom andamento da história, e como diria a própria mamãe: parênteses nem os dentes! Vamos à história então:
                          Um dia sem quê nem pra quê tomei uns catiripapos de papai! E tudo isso bem no meio da sala de estar. Pode? Só porque eu deixei escorregar o livro que trazia debaixo do braço para a mesinha de centro muito limpa de mamãe, acho que era de mamãe, pelo menos era ela quem a esfregava com uma flanela todo santo dia! O problema nem era a mesinha asseada de mamãe, tampouco o livro que escapuliu do sovaco à mesinha. O problema era o titulo ABERRANTE segundo o tamanho dos olhos espantados do próprio papai: “O-QUE-SIGINIFICA-ISTO?”
Este “O-QUE-SIGNIFICA-ISTO”, viera tão velozmente igual ao seu bração! E fez: Pá! Não, fez: Plaft! Ali mesmo no meio da sala. Que ódio! Ai, quiódio! Acompanhado de um: “VOCE ANDA A LER IN-DE-CÊN-CI-AS E PA-LA-VRÕES E COISA E ATAL!... ele trovejou. “Mas onde está esse palavrão, Deus do céu!” mamãe disse. “Cadê ELE? Cadê As INDECÊNCIAS!” ela disse e começou a enfiar os seus oclões ou oculões, seja lá o que for mais certo. O fato é que ela não estava conseguindo achar o PALAVRÃO de papai, nem à lupas!
“Veja!” Ele disse, berrou. “Bem aqui na sua frente! no seu nariz!”, e esfregou o livro bem proximozinho ao rosto delicado de mamãe! Bem rente aos seus olhinhos negros e cegos, agora: acabados de cegar! É o que pareceu ao próprio papai que andava com o dedo sobre o livro apontando-lhe as INDECÊNCIAS jogando-LHES à cara!
 Eu tive de entrar no assunto. Tive de imiscuir-me (adoro essa palavra: imiscuir!) “É que não se trata propriamente de um palavrão, mamãe! E sim de uma palavrinha, uma palavrinha de nada, uma tênue e frágil palavrinha! Indefesamente a mercê de preconceitos etcétera!...” eu disse.
Qual é o problema, meu Deus do céu, com esse monossílabo tão inofensivo que até os próprios professores (principalmente eles), andam a cantá-lo aos quatro ventos como as tabuadas de outrora: “c a: ca, c o: co, c u: cu!”? E não são eles, Deus do céu! que adoram embalar suas criancinhas com essas soletrações escolares, criancinhas de berço, até! Que mal há nisso, ora! Quanta injustiça com o danado do cu!” eu disse, não, pensei alto. (ADORO PENSAR ALTO, PARECE MUITO COISA DE ADULTO, DE ARTISTA DE TV).
 Foi aí que mamãe declarou em alto e bom som: PALHAÇADA...
NÃO:
PA-LHA-ÇA-DA!  Mamãe adorava gaguejar as palavras, sobretudo quando estava “COBERTA DE RAZÃO”. Ela estava olhando fixamente para papai e jogando o livro de novo, repassando-o, para a mesinha tinindo, lustrando em óleos de peroba. “FRAN-CA-MEN-TE!” Ela disse assim que percebeu o grande equivoco de papai.
Aconteceu que o livro intitulado “O dia do Jacu” (antes fosse do Chacal), estava com a beira arrebitada a capa um pouco dobrada como uma carta, deixando à mostra desinibidamente nu, ao deus-dará, o seu último monossílabo. Ai que confusão dos infernos esse JACU nos trouxe! Mas eu explico. É que o diabo do “Já” de jacu, encontrava-se na parte oculta da dobra; enquanto o nojento, o nojentinho do “cu”, estava totalmente para cima, livre desimpedido, tomando a brisa gostosa daquela quase tarde ensolarada!
“FRANCAMENTE!” Mamãe disse de novo dando a história por encerrada! Mamãe era craque nisso, em encerrar histórias com chave-de-ouro! “E tudo isto, por uma coisinha de nada, uma coisinha à toa! Uma miniatura de palavra, Deus do céu! Que não fede nem cheira! Não faz mal a ninguém. Francamente, faça-me o favor! Ponto”.
“Exagero à parte, mamãe! Também não é tudo isso daí! Não. Eu não acho que essa palavrinha preencha toda essa fieira de adjetivos! Menos a verdade!” E foi isso aí! No fim das contas tudo acabou bem, o mal-entendido foi desfeito, graças a Deus! A minha amiga do peito, Bezinha, veio almoçar conosco! Mamãe selou aquele dia com um bonito bolo de chocolate. Adoooooro bolo de chocolate!!! A tarde prosseguiu lindamente ensolarada e azul, como qualquer anil!    
 Agora é a sua vez de contar. Invente sua história! Sua professora vai amar, elas são sempre suscetíveis a esses amores, a esses contos do vigário! E por falar nisso, acabei de lembrar-me de um... Ah! Primeiro você, claro! A vez é sua:
Entrou na perna do pato saiu na perna do pinto, senhor rei mandou dizer que você contasse cinco; ou: entrou na perna do pinto, saiu na perna do pato, senhor rei mandou dizer que você contasse...? 

Maria Bessa é Professora de Língua Portuguesa, Redação e Literaturas, atualmente dedica-se a atividade de escritora e poetisa. Possui três livros publicados: "Entre Eros e Tanatos", "Marco do Meio" e "O último circo". Natural de Mataraca - Paraíba, reside atualmente na cidade do Rio de Janeiro.

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