quinta-feira, 28 de junho de 2012

Charles Baudelaire - Pequenos poemas em prosa.


A uma da madrugada


            Enfim, sozinho! Não se ouve mais nada, salvo o rodar de uns fiacres tardios e exaustos. Durante algumas horas, possuiremos o silêncio, senão o repouso. Enfim: a tirania da cara humana desapareceu, e agora eu vou sofrer só por mim mesmo.
            Enfim me será permitido relaxar num banho de trevas! Primeiro um duplo giro de chave na fechadura. Parece-me que ele aumentará minha solidão e fortificará as barricadas que me separam atualmente do mundo.
            Horrível vida! Horrível cidade! Recapitulemos o dia: ter visto vários homens de letras, um dos quais me perguntou se dava para ir à Rússia por terra (não há dúvida de que ele tomava a Rússia por uma ilha); ter discutido generosamente com o diretor de uma revista que a cada objeção respondia: “Nosso negócio aqui é honesto”, o que implicava que todos os outros jornais fossem redigidos pelos velhacos; ter cumprimentado umas vinte pessoas, inclusive quinze desconhecidas; ter distribuído apertos de mão na mesma proporção, e isso sem ter comprado, por cautela, um par de luvas; ter subido, para matar o tempo durante um aguaceiro, ao quarto de uma rapariga que me pediu para lhe desenhar um traje de Vênusa; ter cortejado um diretor de teatro que disse, mandando-me embora: “Você faria, talvez, bem em recorrer a Z...; é o mais lerdo, o mais tolo e o mais célebre de todos os meus autores; com ele você poderia, talvez, conseguir alguma coisa. Veja-o, e depois nós veremos”; ter-me gabado (para quê) de várias vilezas que jamais praticara e covardemente negado umas faltas que cometera com alegria, delito de fanfarrice, crime de respeito humano; ter recusado um serviço fácil a um amigo e dado referências escritas a um rematado patife; ufa, será tudo?
            Descontente de todos e descontente de mim, eu gostaria de redimir-me e orgulhar-me um pouco no silêncio e na solidão da noite. Almas dos que amei, almas dos que cantei, deem-me forças, apóiem-me, afastem de mim a mentira e os miasmas corruptores do mundo, e vós, Senhor meu Deus, concedei-me a graça de produzir uns bons versos que me provem a mim mesmo que não sou o último dos homens nem inferior àqueles que estou desprezando!






Fonte: BAUDELAIRE, Charles. O Esplim de Paris: Pequenos Poemas em Prosa. Tradução: Oleg Almeida - São Paulo: Martin Claret, 2010.


Um comentário:

  1. poxa, jack! esse poema em prosa de baudelaire, arrancou-me lágrimas, "relaxar num banho de trevas" é a metafora mais bonita para designar noite... bela escolha, miga!

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