Por Jacqueline Gaudard
“Não sou uma mulher política, sou
apenas uma mãe desesperada.”
Zuzu Angel
Heloneida Studart, escritora e deputada brasileira, pretendeu ao longo de sua trajetória transformar a vida social brasileira através da denúncia dos problemas sociais, políticos e econômicos em suas obras. Presa durante o regime militar em seu país dedicou parte de seus livros a criticar e a denunciar esta forma de governo. Seus três romances (O pardal é um pássaro azul, O estandarte da agonia e O torturador em romaria), que abordam este período, são definidos por ela como “Trilogia da Tortura”.
O romance O estandarte da agonia, de Heloneida Studart, é verdadeiramente a realidade transformada em ficção. A autora tenta captar em uma única voz toda a aflição de uma mãe desesperada pelo filho desaparecido por motivos políticos.
Publicado em 1981 o romance é baseado na versão trágica da história da amiga Zuzu Angel, pois a autora tenta transportar para a ficção toda a realidade traumática vivenciada pela amiga como fruto de denúncia das atrocidades cometidas pelo sistema repressivo da época. De forma que muitas outras histórias sejam aqui também representadas, sobretudo, no que diz respeito à representação do sofrimento de tantas outras mães que vivenciaram, assim como ela, o drama de não terem notícias de seus filhos desaparecidos pelo regime político. Pois muitos deles passaram como anônimos na história que compôs a realidade brasileira.
Muito mais que instrumento de denúncia o romance representa um exemplo do quadro temático da literatura engajada, sobretudo, no que foi produzido de melhor na ficção brasileira nos anos 70/80. Trata-se da reconstituição do período histórico que corresponde ao uso da violência política no país. Portanto, o que observamos na obra é o retrato desse período violento e conturbado da sociedade.
A autora através da produção ficcional tenta retratar o cotidiano dessas pessoas no período da ditadura, a realidade do país naqueles dias de terror, de protestos e perseguições políticas, de maneira que, o leitor, possa refletir sobre o poder emanado pelas forças desse sistema político injusto, utilizando-se como objeto de observação temático a questão da tortura no país.
Em O estandarte da agonia mergulhamos na história da “Mãe-Coragem”, chamada Açucena, que vivia
amargurada pelos cantos da casa em busca do filho desaparecido pelo
“regime-ilegítimo”. Ela representa o próprio sofrimento e a desventura de
mulher marcada pela violência e opressão da sociedade.
É através do relato das memórias da personagem-narradora que o romance é conduzido. Nele observamos o universo de violência e opressão da história de vida de uma mãe corajosa e persistente, que não se cansava de lutar por uma pista que a levasse ao verdadeiro e único motivo do desaparecimento do filho. Mesmo que para isso arriscasse sua vida e, levantasse o estandarte da alienação da própria existência.
Vinda de uma família de
estrutura matriarcal, do interior nordestino, ela representa uma exceção no que
diz respeito a vida difícil do Nordeste, pois ao contrario do amigo Argemiro,
ela não se criou “No tempo...mas num casarão imenso, ensolarado, corredores
infinitos, gaiolas de canários e pátios internos.” (p. 9). Mas como tantas
outras vivia esmagada pela hipocrisia de uma família convencional, guiadas por
leis e costumes socias opressores.
Açucena, filha de Estela
e Sebastião, aprende desde pequena a conviver com a ausência do sentimento de
amor, pois seus pais a todo momento privava-a de qualquer manifestação de
carinho, encarando-a como objeto de rejeição. A mãe, principal responsável por
essa falta de amor, representa à própria barreira na busca por esse sentimento.
É nela que observamos a primeira manifestação de opressão do romance, pois ela
representa para a Açucena um obstáculo para atingir a realização amorosa,
sobretudo, no que diz respeito ao relacionamento com o pai – que era um homem
sem muitas imposições –, onde a mãe encarava-a como rival do sentimento de amor
e das atenções do marido. Trata-se da representação do Complexo de Édipo da teoria freudiana movendo o conflito da relação
de mãe e filha. Pois a única voz de
comando pertencia a mãe , que era ciumenta e, alimentava um amor sufocante com
relação ao marido, na tentativa de
esconde-lo do resto do mundo, inclusive da filha. Estela representa, na
verdade, a voz opressiva da família:
Mais de uma vez, descalça, fugi do meu quarto de
criança, tentando entrar na furna dos chocolates prateados. Mas a porta estava
sempre fechada. Eu esperava, apoiada à madeira velha, esperava longamente, às
vezes chorando, em silêncio...eu sentia vontade de me sentar sobre os joelhos
de meu pai, ver-lhe de perto os olhos garços. Mas tinha medo de mamãe, sempre
tão ciumenta das menores migalhas do afeto de seu homem. (p. 11)
Sobre o domínio da mãe, a
menina “crescia pelos cantos, excluída do centro das paixões e dos desvelos mútuos
do casal...” (p.11), junto das tias solteironas Cesarina, a mais velha, que
alimentava um eterno luto pelo noivo Jeremias. A mais nova Angélica, devota,
que não tirava do pescoço uma “Medalha Milagrosa”. E Vivinha, sua ama e única
pessoa que se importava com ela e que dava um pouco do seu afeto.
É nessa atmosfera de opressão que é
tecida a estória, composta de elementos contraditórios, marcados por ações que
caracterizam bem a violenta repressão que existia no “aconchego do lar”. O
significado que deveria compor o sentido de família se encontra dilacerado nos
costumes e nas leis que regem a sociedade.
A
irrealização do amor na
vida de Açucena faz parte do conflito da narrativa, pois é através do presente da enunciação que a personagem
coloca toda a sua dor pela difícil realização amorosa. Que, agora, na figura de
mulher madura, continuaria a fazer parte do drama da vida da personagem. Com
Bruno (artista plástico), que dentro da estória assume dois papéis: o primeiro
o traidor e infiel e, o segundo o militante político, responsável por leva-la a
uns do caminhos do filho. Em seguida, temos a figura do marido Pedro
(engenheiro), que entrara na sua vida
por acaso e, levava uma relação com descaso e sem amor. Tendo como fruto dessa
relação Margarida, uma menina que, assim como ela, também é vitima do desamor
de mãe. E Luis, que representa sua única fonte de esperança de ir ao encontro
da realização desse sentimento, pois acreditava que através dele deixaria de
“chorar diante de portas fechadas...” (p. 8). E por último temos a figura de
Argemiro – um homem casado com uma mulher inválida, chamada Bete – , amigo e
fiel companheiro na busca de Luis, que não media esforços para ajuda-la.
Os caminhos percorridos
pela personagem é o que irá compor o drama de sua trajetória na luta para
encontrar o filho. Trata-se de uma verdadeira romaria pela busca da verdade,
pois é através dessa busca que a personagem é movida dentro do romance. O
conflito é construído na medida em que ela relata sua estória de vida, desde a
relação afetiva com Luis, até a aflição sobre o seu desaparecimento em uma loja de doces do bairro. Apresentando,
conforme o decorrer da narrativa, outros personagens chaves que tentam leva-la
ao caminho de Luis. Como podemos observar na seguinte passagem:
Vários tinham surgidos, a partir da minha desgraça: o
caminho do general, o caminho do segundo Bruno, a estrada que me levara ao
torturador Militão e à Ordem dos Advogados. (p. 118)
Conforme a exposição da
narrativa, percebemos uma metamorfose na personagem-narradora, que o tempo todo
narra o acontecido e vive o presente narrado, por meio de digressões, que ao
longo do romance vão tomando forma e sentido.
Em verdade, as
contradições da personagem refletem o choque que ela é submetida com a
realidade do mundo, pois isolada anteriormente em seu mundo interior, tentando
compreender toda a opressão que era desencadeada no contexto familiar, ela se
vê de repente diante de um mundo violento e opressor onde a lei é a do mais
forte. É sobre essa perspectiva que Açucena confronta o mundo interno e
externo: violento e opressor. É o drama de encarar o real, o cotidiano, o aqui
e o agora, como única verdade das coisas sem direito a voz para tentar mudar o
sistema, a política, as idéias, de se construir uma realidade justa e boa para
todos.
E era nesse mundo
violento que seu filho Luís estava envolvido, com os problemas políticos e
sociais. Uma realidade que nem mesmo ela sabia que existia, não com tanta fúria
no sentido real de sua existência que tortura o ser até as últimas
conseqüências. O que conhecia do filho era apenas o seu sentimento de justiça perante as
coisas, pois ele tomava partido, desde criança, pela problemática de se viver a
vida. Como a do “povo africano”, onde dizia que Cota (negra e emprega
doméstica) “..fora usada por séculos, para enriquecer uns poucos...” (p.103). E
que o “povo indígena” também foram maltratados, uma vez que, “foram expulsos da terra onde seu povo estava
há mil anos...” (p.101). Por outro lado, os camponeses perdiam suas terras
paras os banqueiros e empresários. E sem esquecer dos nordestinos, que saiam de suas cidades em
busca de melhores condições de vida e, que acabavam “faxineiros” em prédio de
cidade grande. Ou seja, são reflexões como essas que ficaram na memória dessa
mãe e que mais tarde ganhariam sentido. Assim como a peça que ele rabiscara
apenas o primeiro ato intitulado O
Escrachado Rei Quipuru onde contava a estória de um rei canibal.
A realidade dos fatos
para Açucena representava apenas uma ficção, já que era mascarada pela
sociedade e, “não saíam no noticiário de televisão” como instrumento de
caracterização da verdade das coisas. Mas, para Luís, a mascara fazia parte do
sistema, que nunca dizia à verdade no noticiário e utilizava a tevê como uma “janelinha aberta
sobre um mundinho de faz-de-conta”. (p.102)
A relação de Açucena com
o filho é apresentada de forma desconsertante, pois a ligação afetiva que
mantinha com Luís é representada na obra de forma erotizada ao olhar atento das
pessoas, principalmente de sua mãe, Estela, que chegou a ensinuar que ela não
envelhecia “para parecer namorada desse filho!”, só pelo fato de andarem de mãos dadas por aí.” (p.22). Como
Açucena mesmo dizia: “Entre meu filho e
eu existia sempre uma linguagem secreta, uma espécie de fusão.” (p. 193)
A figura da mãe é
encarada de forma traumática na composição dos fatos narrados pela personagem,
ela representa o tom de angústia vivenciado a todo o momento pela filha. Que
chega a culpa-la de alguma maneira pelo desaparecimento de Luis:
Hoje, minha mãe não tem mais marido, eu não toco em
doces; no entanto, ela exige que lhe comprem os seus chocolates. Foi assim,
indo à confeitaria para cumprir os caprichos da avó, que meu filho Luís
desapareceu. E eu comecei a peregrinação, a romaria. (p. 73)
Mas só não contava que a peregrinação que iniciara,
teria fim! Pois o desfecho desse enredo acabaria com a trágica carta escrita
pelo estudante de engenharia, Alexandre Parlussi, relatando à morte de Luís na
prisão. Tendo como resultado o fim da romaria de Açucena. Entretanto, fica em
aberto no romance a que fim teria levado a vida de Açucena, após a
informação, na espera dos militares: “E
fiquei me embalando à brisa da tarde, esforçando-me por não vomitar, porque vomitaria
sangue, à espera dos policiais. À espera.” (p. 223)
Contudo, o que
fica é a trágica história de uma mãe marcada pelo descaso das leis que
correspondem ao sistema cultural e político da sociedade. A nova ordem política
conduzida pelo uso da violência representa na narrativa o fio condutor do
conflito. A constante tortura física e moral sofrida pela a maior parte das personagens da
estória, aborda muito bem o que foi esse sistema repressor. O drama da
personagem principal, Açucena, é fruto do violento período marcado por torturas
e o abuso do poder das autoridades governantes do país. Açucena é um exemplo de
mãe que não desistiu de lutar pela verdade: “Iria atrás do meu filho nos
confins do mundo, para além de todas as fronteiras do medo e do desespero.” (p.
68) Ela é uma verdadeira militante contra as idéias do sistema opressor.
TAPAJÓS, Renato. Online: disponível na internet via http: http://noticias.aol.com.br/brasil/fornecedores/aol/2004/03/29/0014.adp. Data: 04/06/2005.
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